Um levantamento realizado pelo jornal O GLOBO, com base em dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revelou que o Judiciário brasileiro desembolsou aproximadamente R$ 7 bilhões em remunerações acima do teto constitucional ao longo de 2024. Em resposta, o CNJ declarou que grande parte desses pagamentos se refere a decisões judiciais que garantiram aos profissionais o direito a esses valores.
Os chamados “penduricalhos” nos vencimentos estão presentes em todas as esferas da Justiça e, em alguns tribunais, geraram rendimentos adicionais superiores a R$ 500 mil por magistrado no ano. Em certos casos, esses valores sequer sofreram incidência de Imposto de Renda. Na média nacional, o pagamento acima do teto foi de cerca de R$ 270 mil anuais para cada magistrado.
A questão das remunerações que ultrapassam o limite constitucional está no centro das discussões sobre corte de gastos públicos. Durante encontros com os presidentes da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou propostas para regulamentar o pagamento a servidores, incluindo as verbas indenizatórias, por meio de um projeto de lei em tramitação no Senado.
O teto constitucional e os adicionais
A Constituição brasileira estabelece que a remuneração de servidores públicos não pode ultrapassar o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que era de R$ 44 mil em 2024 e subiu para R$ 46,3 mil em 2025. No entanto, a prática do pagamento de verbas indenizatórias permitiu que muitos servidores recebessem além desse limite.
Os dados do CNJ apontam que, no ano passado, o Judiciário destinou R$ 4,9 bilhões a direitos eventuais, como pagamentos retroativos e licenças compensatórias, além de R$ 1,8 bilhão em indenizações, totalizando R$ 6,7 bilhões. Se forem incluídas rubricas como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-saúde e gratificação natalina, o valor poderia chegar a R$ 12 bilhões.
Para Luciana Zaffalon, advogada e diretora executiva do Justa, centro de pesquisa focado na economia política da Justiça, os pagamentos acima do teto são comuns em diversos órgãos do sistema judiciário, incluindo os Ministérios Públicos. Ela destaca que a falta de transparência sobre esses recursos dificulta o monitoramento e compreensão por parte da sociedade.
A polêmica da licença compensatória
Um dos mecanismos utilizados para justificar os pagamentos extra-teto é a licença compensatória, que converte folgas não usufruídas em dinheiro. A gratificação por exercício cumulativo permite que magistrados acumulem um dia de descanso para cada três dias trabalhados, podendo ser convertida em remuneração. Um levantamento da ONG Transparência Brasil revelou que, em apenas 16 meses, esse tipo de pagamento somou R$ 816 milhões.
O CNJ informou que essa indenização é prevista em resolução e funciona como compensação para magistrados que acumulam atribuições. O cálculo considera um terço do salário do juiz para cada 30 dias de exercício cumulativo.
Tribunais com maiores pagamentos
De acordo com os dados analisados, o Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais (TJMMG) foi o que mais registrou pagamentos acima do teto em termos proporcionais. Com apenas 29 magistrados, o órgão desembolsou R$ 24 milhões acima do limite, o que equivale a R$ 835 mil extras por magistrado. Além disso, foi identificado que, em alguns meses de 2024, juízes chegaram a receber até R$ 100 mil apenas em pagamentos retroativos.
Em resposta, o TJMMG afirmou que todos os pagamentos seguem a legislação vigente e respeitam as diretrizes do CNJ. O órgão também alegou que os valores considerados acima do teto são indenizatórios, abrangendo diferenças retroativas, férias não usufruídas e compensações por dias de crédito.
Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) foi responsável por um gasto de R$ 953 milhões somente com folhas de pagamento que ultrapassaram o teto constitucional. A Corte afirmou que os pagamentos seguem a legislação e que os valores adicionais se referem a benefícios acumulados ao longo da carreira, como férias e plantões.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, o Tribunal de Justiça do Paraná e o Tribunal Superior do Trabalho também foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram.
Impacto fiscal e distorções salariais
O economista Nelson Marconi, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), alerta que o pagamento de penduricalhos não apenas gera um impacto fiscal significativo, mas também aprofunda desigualdades dentro da administração pública. Segundo um relatório do Tesouro Nacional, o Brasil destina 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB) ao sistema judiciário, enquanto a média de países emergentes é de 0,5% e, nas economias avançadas, apenas 0,3%.
Marconi, que atuou na formulação da reforma administrativa de 1998 durante o governo Fernando Henrique Cardoso, destaca que, desde então, já havia preocupação com os adicionais salariais. Ele argumenta que as interpretações sobre verbas indenizatórias criaram brechas para remunerações que escapam do teto constitucional.
Embora a eliminação desses pagamentos extras não seja suficiente para resolver o problema fiscal do país, Marconi considera que eles limitam a capacidade de investimento do governo. Para ele, a manutenção desses valores não se justifica dentro da realidade econômica brasileira. (Fonte: Agora RN)